JUDAS TRAÍDO
Merlânio Maia
O poeta é porta voz
De quem já foi excluído
De quem não tem voz nem vez,
Injustiçado e vencido
Exatamente por isso
O poema é compromisso
De quem precisa falar
E como poeta o meu canto
Empresto e encho de encanto
Para a justiça reinar
Pois muito bem ainda ontem
Um homem me procurou
Aproximou-se de mim
E taciturno falou:
- Minha história é incompleta
Por isto busco um poeta
Com candeias e archotes
Para contar minha saga
Cheia de golpes de adaga
Sou Judas Iscariotes
Vim pedir-te voz e vez
Pra que toda humanidade
Saia da ignorância
Conheça toda a verdade
Escreva tudo em Cordel
Pra plebeu e bacharéu,
Saberem toda a razão
Da saga que me consome
Por isso é hoje o meu nome
Símbolo de traição!
Oh! Juízes dos juízes
Tiranos entre os tiranos
Olhai pra mim, vês o homem
Condenado em vossos planos
Que mais vês, de quem viveu,
Seguiu, amou, defendeu...
O seu Cristo até a morte?
E por sentir-se traído
Claramente incompreendido
Tentou dar o fim a sorte?!
Aqui me tendes senhores
Réu, julgado e condenado!...
Ante o júri religioso
E por vós qualificado
Ante vossa religião
Cujo Mestre é o do perdão
Que não condenou jamais
Mas por vós sou condenado
Todo ano martirizado
Sem espaço pra ter paz
Delinqüi sim, eu confesso,
Porém, não premeditei
E a minha história eu professo
Ao mundo inteiro que errei
Porque tomado de ânsia
Na cruel ignorância
Cri no Cristo firmemente
Conhecia o Seu poder
E via do céu descer
Toda glória onipotente
Eu nasci em Kerioth
Na Judéia tão divina
Cresci livre amando a vida
Sem saber da minha sina
Fui mercador desde novo
Mas o amor ao meu povo
Levou-me ao triste caminho
Da guerrilha desumana
Contra a invasão romana
Meu ódio foi meu espinho
Quantos romanos matei?
Perdi a conta dos pares
Mas quanto mais eu matava
Chegavam mais aos milhares
Cada batalha vencida
Os via ceifando a vida
Meus irmãos crucificados
E por mais que eu combatesse
Que as batalhas eu vencesse
Sempre estava derrotado
Até que num certo dia
Já quase a perder a fé
Numa mansa tarde eu via
O Mestre de Nazaré
Pregando um reino do Bem
Falava como alguém
Incendiado de amor
Com o seu poder sobre-humano
Trazia de Deus o plano
De Messias Salvador
Então veio à minha mente
Toda a crença do Messias
Libertador sem limites
E muito mais nEle havia
Curava os desgraçados
Amava os desesperados
Liberdade era sua vida
E o meu amor foi crescendo
Vi nEle o céu descendo
Salvando a raça escolhida
Então Ele docemente
Disse pra me aproximar
E foi conduzindo o grupo
Com um jeito manso de amar
Fez-me o convite pra vida
E em minha força incontida
Vi o quanto Ele era forte
Falando em libertação
Num reino só de irmão
Vencedor da própria morte
Vi seu amor pelo povo
Sofrido e injustiçado
Era o meu povo querido
Que eu queria libertado
Quantas vezes O ouvia
Dizer que os libertaria
Da garra tão desumana
E eu naquilo acreditava
Mas o mal que eu pensava
Era o da raça Romana
Ledo engano, meus senhores!
Era outro reino, no entanto,
E eu bem ali do seu lado
Sabendo o quanto era santo
Conhecia o seu valor
Tanta ternura e amor
Que tinha por todos nós
Ah! Jesus quanta saudade...
Da doçura e da amizade
Saída da Tua voz!
Quantas noites estreladas
O Mestre contava história...
Falava de um certo reino
Que não me sai da memória
Seu rosto transfigurava
E o tempo não mais passava!...
Era como se estancasse
Toda ampulheta vencida
E a Sua canção de vida
A brisa mansa levasse!...
Os doentes, os leprosos,
Chagados cheios de dor
Jogavam-se aos pés do Mestre
Pra receber seu amor
As mulheres maltrapilhas
Com seus filhos, suas filhas...
Vinham beijar sua mão
E assim a dor acabava
O próprio mar se acalmava
Para escutar seu sermão!
Acreditam que traí
Aquele que me deu vida
Que me deu toda a esperança
Quando eu já a tinha perdida?
Jamais traí meu Senhor
E é esta a enorme dor
Que dentro de mim emana
O meu ser está doído
Por ter sido, sim, traído,
Por tal condição humana
Não traí, eu fui traído!
Repetirei renitente
Sempre fui bravo soldado
Destemido, competente...
Sei que agora estou vencido
Por sentir que fui traído
Por ser fraco e ser humano
Pois ali nunca entendi
O que o Cristo fez ali
Qual era enfim o seu plano
E o meu plano era levar
Meu povo à libertação
Fazê-lo livre do jugo
Da águia da perdição
Vivi só na noite escura
Naquela minha loucura
Tinha uma crença vã
De que a qualquer momento
Libertaria o tormento
Nos entregando o amanhã
Bastava que Ele quisesse
E mil legiões de anjos
Rasgando os céus chegaria
Liderados por arcanjos
Cada um com seu decano
Banindo todo romano
Na mais divina das guerras
Doando ao povo escolhido
Toda a paz que tem perdido
Na triste face da Terra
Se o Cristo tão poderoso
A Deus fizesse o pedido
Aquele povo maldito
Seria dali banido
E o meu sonho era de ver
Tudo isto acontecer
Conforme a crença vulgar
Que o Messias guerreiro
Viria à Terra primeiro
Para aos judeus libertar
Mas que demora era aquela
Porque Ele não agia?
O que o Senhor aguardava?
E a minha mente fervia...
O que eu podia fazer
Para que pudesse ver
Sua poderosa ação
Pois Ele algo aguardava
E só curava e pregava
O reino da salvação
Minha mente então fervia
De pressa e ansiedade
Na espera da sua ira
Sobre os donos da cidade
Então bolei grande plano
Pra que o Mestre soberano
Vendo-se encurralado
Pudesse aos céus abrir
E com ira destruir
O inimigo detestado
Fingindo ser traidor
Fui a procura de Anás
Invejoso e vingador
Ligeiro chamou Caifás
Crendo os dois que eu vendia
Jesus pela ninharia
De apenas trinta dinheiros
Então como eles buscavam
O Mestre e não encontravam
Caíram como cordeiros
Eu sabia que o Mestre
Em breve os destruiria
Pois Jesus não aceitava
Crueldade e hipocrisia
Eram poços de maldade
E assim tramaram à vontade
E eu esperava somente
Que Jesus cheio de glória
Faria a nova história
Daquele dia pra frente
Assim pensei e assim fiz
Nunca esperei outro fim
E quando ao Mestre beijei
Num sinal torpe e ruim
O Senhor como um cordeiro
Se entregou por inteiro
E ainda chamou-me “amigo”
E até hoje não me sai
O sentido de quem trai
E é traído consigo
Ainda segui seus passos
Esperando que Jesus
Abrisse os céus e vencesse
Mas quando O vi com a cruz
Sendo ali crucificado
Foi o fardo mais pesado
Que nessa vida levei
Cheio de remorso e dor,
De sofrimento e de horror
O suicídio então busquei
Pois nessa hora eu entendi
Do Cristo toda a missão
Compreendi a verdade
Do termo libertação
Que importa a raça romana
Ou qualquer outra tirana
Se há liberdade do amor
Liberdade do perdão
Fraternidade de irmão
E comunhão como Senhor!
A vida continuava
Eu não morria jamais
E além de me torturar
Sem ter perdão, sem ter paz!
Condenado ano após ano
Pelo contexto humano
Sem ter direito a defesa
Hoje sem honra e sem glória
Trouxe a todos minha história
Da alma abri a represa!
Quando Judas se calou
Um sentimento sem fim
Da grandeza da poesia
Derramou-se sobre mim
E os meus versos caiam
Como que d’alma saíam
Levando onde há treva a luz
Hoje dei voz ao zelote
Ao Judas Iscariotes
E sua Paixão por Jesus
Memória aqui não me falta
Entoa a poesia e salta
Revelando toda a palta
Livre de todo pavor
Assim meu verso agiganta
Nas asas da vida canta
Imortal Lira que encanta
Onde falta paz e amor!